quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Textos para análise - 3ª série do ensino médio

Texto para: Ana Paula, Luana, Rafael, Edvaldo, Eudaldo, Diógenes, Hemerson

Tieta do Agreste
Jorge Amado

MINUCIOSA DESCRIÇÃO DO CONFUSO DESEMBARQUE DE TIETA, A FILHA PRÓDIGA, OU ANTONIETA ESTEVES CANTARELLI, A VIÚVA ALEGRE

Na primeira fila, a família, tristeza expressa nos olhares, nas lágrimas, nos trajes. Um passo à frente dos demais, o velho Zé Esteves, mascando fumo. Em seguida aos enlutados parentes, o reverendo, os meninos do catecismo, as pessoas gradas, dona Carmosina, buquê em punho, o colorido alegre das flores destoando do crepe e do choro – essa criatura para aparecer passa por cima dos sentimentos mais sagrados, indigna-se Perpétua, por baixo do véu preso ao coque, a lhe cobrir o rosto. Depois as beatas e o resto da população.
A marinete se aproxima, Jairo ao volante, poucos passageiros. Para Jairo dia magro, para Agreste dia gordo, dia de matar o carneiro pascoal, de foguetório e festa em honra da filha pródiga, não fosse ela viúva em nojo e dor. Cabem somente luto e lágrimas, cantoria de igreja.
As conversas cessam, Peto se alteia na ponta dos pés, assim a tia desembarque ele cairá fora, arrancará os sapatos. A marinete estanca num rumor cansado de juntas e molas. Peto conta os passageiros que descem: seu Cunha, um, o casal de roceiros, dois, três, dona Carmelita, quatro, a criada cinco, esse eu nunca vi, seis, nem esse sete, seu Agostinho da padaria, oito, a mulher dele, nove, a filha, dez, a tia Antonieta e a moça vão ser os últimos. Mesmo Jairo salta antes, carregado de maletas e de bolsas das esperadas viajantes. Com Jairo fazem onze, agora doze, é ela, por fim.
Será ela? Peto fica em dúvida. Não pode ser, a tia deve estar de luto, véu fúnebre tapando o rosto, igual à mãe, não pode ser de maneira alguma essa artista de cinema, Gina Lollobrigida. Na porta, sobre o degrau, majestosa, Antonieta Esteves – Antonieta Esteves Cantarelli, faça o favor, exige Perpétua. Deslumbrante. Alta, fornida de carnes, a longa cabeleira loura sobrando do turbante vermelho. Vermelho, sim, vermelho igual à blusa esporte, de malha, simples e elegante, marcando a firmeza dos seios volumosos dos quais se vê apreciável amostra através da gola de botões abertos. A calça Lee azul colada às coxas e à bunda, valorizando volumes e reentrâncias, que volumes! que reentrâncias! Os pés calçados com finos mocassins havana. O único detalhe escuro em todo o traje da viúva são os óculos esfumaçados, lentes e armação quadradas, o poder do chique, assinados por Christian Dior.
O espanto dura uma fracção mínima de tempo, um tempo imenso, uma eternidade.
Peto, vitorioso exclama:
- A tia não está de luto, Mãe. Posso tirar os sapatos e a gravata?
Antonieta, paralisada sobre o degrau, na porta do ônibus: diante dela a família de luto pela morte de Filipe, o inolvidável esposo, e ela em tecnicolor, em azul e vermelho, blusa aberta, esportivas calças Lee, ai, meu Deus, como não pensara em luto? Estudara cada pormenor e os discutira com Leonora, meticulosamente. Esquecera o mais importante. Mas já Zé Esteves cospe o pedaço de fumo e estende os braços para a filha pródiga:
- Minha filha! Pensei não ia mais te ver mas Deus quis me dar essa consolação antes da morte.
De cima do degrau da marinete, Antonieta reconhece o pai. O pai e o bordão. É o mesmo, o mesmíssimo cajado que cantou em suas costas naquela noite de fim do mundo. Um frouxo de riso sobe dentro dela, não consegue contê-lo, estremece, incontornável som a romper-lhe a boca, apenas tem tempo de encobrir o rosto com as mãos, antes de saltar. Acorrem todos a consolar a viúva em pranto, filha pródiga afogando os soluços nos braços do pai, comovente instante. Nem Perpétua se deu conta. Elisa chora e ri, de repente desafogada, a irmã sendo como a imaginara, sem tirar nem pôr. Única a estranhar o curioso som inicial, dona Carmosina aproxima-se com as flores tão de acordo com o traje de viagem de Tieta.
Enquanto Tieta vai de abraço em abraço, disputada pelas irmãs, pelo cunhado, pelos sobrinhos - tire os sapatos meu lindo, fique à vontade – presa aos beijos sem conta, às lágrimas de Elisa, na porta da marinete de Jairo aparece a mais formosa, a mais doce e sedutora donzela, esbelta juventude, uma sílfide como logo reconheceu e proclamou o vate De matos Barbosa.
Parada, a contemplar a emocionante cena, emocionada ela também. Encantadora no slaque delavê, boné da mesma fazenda rodeada de cabelos louros, acinzentados pela poeira, Peto reconhece a própria mocinha dos filmes de cauboi.
Um murmúrio de admiração percorre a rua, Tieta, desprendendo-se dos beijos de Elisa, apresenta:
- Leonora Cantarelli, minha enteada, minha filha, não tem diferença.
[...]
Após compreensível indecisão, o padre Mariano resolve, não vai perder, por uma questão de protocolo, o difícil trabalho de adaptação da letra de uma ladainha e de quinze dias de ensaio.
Faz um sinal, os meninos do catecismo cantam:
Vestida de negro
Ela apareceu
Trazendo nos olhos
As cores de luto
Ave! Ave!
Ave Antonieta!
[...]
Ei-la em Santana do Agreste, em meio à família em luto, a ouvir os meninos do catecismo: obrigado, padre, de todo o coração. Do mar, chega a brisa da tarde, vem saudá-la. Com a ajuda de Sabino, Jairo desembarca as malas, a bagagem viaja no teto da marinete, coberta com lona grossa como se alguma cobertura adiantasse contra a poeira do caminho.
- Vamos, minha filha – convida Zé Esteves oferendo o braço, apoiando-se no bastão.
- Para minha casa – tenta comandar Perpétua em meio aos destroços da violada compunção.
Cabe-lhe a culpa, a mais ninguém. Com pudera imaginar Tieta vestindo luto por marido? Fizera da irmã sua igual, como se dinheiro, alta sociedade, casamento com paulista rico e comendador do Papa pudessem consertar quem nasceu torta, rebelde a códigos, leis e respeito humano, sem régua nem compasso.

1. Seguindo a tradição da literatura oral nordestina, o texto é apresentado pelo narrador. A apresentação, em negrito, é feita de modo imparcial ou deixa transparecer opiniões do narrador? Justifique.

2. Sant’Ana do Agreste é uma cidade pequena, de hábitos provincianos. Quando deixou a cidade, Tieta era apenas uma moça simples e namoradeira.

a) Que fato ligado à chegada de Tieta demonstra o provincianismo da cidade?
b) Levante hipóteses: Se Tieta era uma pessoa comum antes de partir da cidade, por qual razão ela tem uma recepção tão especial na sua volta?

3. Por influência de Perpétua, todos da família esperam Tieta em luto pesado. Até o padre, com uma ladainha adaptada, prepara uma homenagem para a viúva em nojo e dor. Entretanto, Tieta não aparece em trajes de luto.
a) De acordo com o texto, porque isso ocorreu?
b) Como as pessoas reagem a esse fato? Justifique com um exemplo.
c) Que significado tem esse fato para Perpétua, considerando-se o juízo que vinha fazendo da irmã distante?

4. Releia estes dois fragmentos:

“Um frouxo de riso sobe dentro dela, não consegue contê-lo, estremece, incontornável som a romper-lhe a boca, apenas tem tempo de encobrir o rosto com as mãos, antes de saltar.”

“Será ela? Peto fica em dúvida. Não pode ser, a tia deve estar de luto, véu fúnebre tapando o rosto, igual à mãe, não pode ser de maneira alguma essa artista de cinema, Gina Lollobrigida. Na porta, sobre o degrau, majestosa, Antonieta Esteves – Antonieta Esteves Cantarelli, faça o favor, exige Perpétua.”

a) Pelo primeiro fragmento, o que se depreende da personalidade de Tieta?
b) De acordo com o segundo fragmento, Perpétua insiste em acrescentar ao nome da irmã o sobrenome do falecido: Cantarelli. O que esse fato possibilita depreender a respeito da personalidade dessa personagem?

5. Como se caracteriza a linguagem empregada no texto?


Extraído de:
CEREJA, William Roberto. Português: Linguagens: volume 3: ensino médio. 5 ed. São Paulo: Atual, 2005.

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Quem sou eu

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Formada no curso técnico de Auxiliar de Escritório no ano de 1996, no Centro Educacional Deocleciano Barbosa de Castro, graduada no curso de Licenciatura em Letras com habilitação para o ensino de Língua Inglesa, Língua Portuguesa e suas Literaturas, na Universidade do Estado da Bahia - UNEB/Campus IV no ano de 2004, pós graduanda em Metodologias de Ensino da Língua Portuguesa, pela Universidade Gama Filho. Trabalho como professora há 10 anos, tendo iniciado minha carreira na Prefeitura Municipal de Quixabeira, como professora de Inglês no Ensino Fundamental. Nos anos de 2005 e 2006 trabalhei como professora substituta na Escola Agrotécnica Federal de Senhor do Bonfim, com a disciplina Inglês para o Ensino Médio. Em 2007, tendo sido aprovada no concurso para professores do Estado da Bahia, assumi a cadeira de professora de Língua Inglesa no Colégio Estadual Roberto Santos, onde hoje atuo também como vice-diretora. Assumi a disciplina Literatura no Colégio Presbiteriano Augusto Galvão, em fevereiro de 2009, e pretendo abrir as janelas desta incrível arte a todos que por ela se interessem.